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Mostrando postagens de agosto, 2025

A quarta dimensão

O som agradável da música vem do banheiro, misturando-se ao barulho da água que cai do chuveiro. Ela canta junto. Na boca repousa o gosto da bebida, marcante e saboroso. A tela exibe o programa que permite a escrita. Sentindo as teclas suaves, os dedos habilmente percorrem cada letra, símbolo e acento. A escrita já foi com canetas e cadernos, hoje ele não tem tanta destreza. Sua letra no papel chega a ser ilegível. Folheando o passado, a caligrafia se dissolve em garranchos sem sentido. Um relógio analógico no pulso esquerdo marca meio-dia e dois, mas a tela exibe 23 de agosto, 12:05. O digital é certo, assim também é o texto, corrigido enquanto se cria. A precisão dos eletrônicos é boa, mas convida a uma vida contada em segundos, quando se quer viver sem hora. Apreciar bons momentos requer um tempo que, no século XXI, parece ser escasso. O som que vinha da Internet, repentinamente, dá lugar à música de um rádio em outro cômodo. Andorinhas bailam voando, buscando presas que capturam no...

Chronos

Cronos, o mais velho dos Titãs, movido pelo medo de ser usurpado, devorava cada filho recém-nascido. Num ato de pura voracidade, engolia não apenas corpos, mas futuros inteiros, condenando-os à escuridão silenciosa de seu ventre—um ciclo maldito onde o tempo não passava, apenas se repetia. Enganado por Réia, sua esposa, cansada da carnificina, que nos panos luxuosos do sexto filho, envolve uma pedra. Cronos, sem suspeitar, engole a rocha—o peso da mentira desce por sua garganta, prenunciando a sua queda. Zeus, o caçula não devorado, cresce longe do olhar paterno. Adulto e poderoso, domina o impiedoso Cronos, forçando-o a vomitar não somente a pedra, mas todos os irmãos aprisionados no tempo. Da escuridão emergem Hera, Poseidon, Hades, Deméter e Héstia—os bebês outrora sem futuro do ventre surgem crescidos, com a força de divindades plenas. Com a queda do opressor, o tempo cíclico quebra-se. Em seu lugar, surge o tempo linear—irreversível, progressivo. As estações passam a seguir uma or...

Odisseia interior

Muitos se perdem em um labirinto de incertos caminhos, buscam a fuga voando nas frágeis asas da quimera, em um voo impossível. Perdidos na infindável monotonia da rotina, como Sísifo condenado a empurrar sua pedra montanha acima diariamente. As ofuscantes luzes da ignorância os mantêm cativos, perseguidos pelo minotauro: um monstro que sufoca a força e astúcia do Ulisses interior, náufrago no vasto oceano da informação. A verdadeira odisseia não se realiza onde não há escolha, mesmo que difícil. A heroica jornada do navegante começa com a decisão de enfrentar Cila, o monstro de seis cabeças, ou Caríbdis, o colossal redemoinho. De posse do leme dessa odisseia, se doma a força do selvagem touro, aquele que ofuscava e confundia as trilhas da mente. Assim, surge a sabedoria de Atena, que repousa em cada ser, trazendo a verdadeira chama que ilumina a consciência. Uma luz que descortina a bússola, mensageira do verdadeiro objetivo, o qual não está nas alturas do monte Olimpo — esse fatal des...

Organizar a vida: a arte do leve participar

Fios entrelaçados povoam a mesa, buscando aumentar a entropia. Se o ser que os liga e conecta não os toca, permanecem ali espectadores do vazio. Sua extensão, em alguns pontos, encontra apenas uma parcela atmosférica em constante movimento. Inertes, têm a energia a fluir em suas veias. Ligam aparelhos, numa frenética troca, transportam apenas, sem saber o que importa. Pessoas são como condutores, alguns meros portadores, em seu interior apenas o metal, que nada retém. Jogadas nas mesas, conectam, conduzem, sem julgar. Recebem, passam adiante e nada acrescentam. Nas mesas da vida jazem entrelaçadas, cada dia mais envoltas no ofício de conduzir, deixam de produzir. Não criam, não pensam. Rolando as telas, ávidos em encontrar uma notícia, um meme, para enfim divulgar. Quanto mais tempo dedicam a essa prazerosa atividade, envoltas em fios, enrolados, jogados, menos crítica vai ficando a sociedade. Emaranhadas na vida que o fútil sempre traz, agradando com o seu brilho tentador. Despreza o ...

Os relógios, as pombas e o café

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São onze horas, o trabalho não rende. Recordo do relógio que, dentre três, havia levado ontem para trocar a bateria. Ao contrário dos demais, o caso dele não se resumia à troca. A bateria tinha vazado, sujando toda a máquina. Apesar de ter feito orçamento, quis perguntar para a dona, concluiu-se que valia a pena por ser o mais caro e bonito. Corpo de titânio e por isso muito leve. Resolvo fazer uma pausa e levá-lo, quem sabe na volta as ideias estariam mais frescas. Também tenho um relógio de titânio, mas sua pulseira está torta pelo tempo, a efemeridade que torna o que registra menor que a dimensão medida. No caminho, passo em uma conhecida cafeteria. Sento ao sol, a gerente, amiga de outros cafés, recomenda um bourbon amarelo. Oferece um macaron. Já tinha ingerido muitos chocolates. Fico só no café. Leio um pouco, o café chega, continuo a ler. Instantes depois, degusto o café. Ao pagar, compro 3 macarons para a minha filha. Coloco-os na sacola onde trazia o relógio, enfiando o mesmo ...

Do barulho ao canto

As gotas da chuva recente ainda pingam, o cheiro inconfundível de terra molhada povoa meu olfato, disparando memórias de outras chuvas na roça. Mesmo na vida corrida da cidade, o recanto do meu jardim exala o mesmo aroma que me transporta para o campo. Uma trilha de formigas corre o chão úmido com a urgência própria de operárias. Lembro da luta de milhares de trabalhadores que, na cidade grande, percorrem trilhas criadas pelos automóveis em suas motos. Eles arriscam a vida nesses veículos, qualquer acidente pode ser fatal. A chuva piora o trânsito, tortura que afeta a todos, mas que é mais cruel com os menos afortunados. Nesse lugar, os mais pobres costumam morar longe, levando horas em dois ou três ônibus, talvez em um metrô, para chegar e voltar do trabalho. Um sofrimento a mais para aqueles que não desfrutam dos privilégios de poucos. A partilha da renda que se gera se distribui como uma pirâmide onde os trabalhadores, na base, ganham muito menos que os privilegiados empresários e i...

Quebrando a monotonia

No horizonte, o ocaso do sol atrás das construções mais distantes. Poucas nuvens no céu tornam o espetáculo ainda mais bonito, adicionando tonalidades adicionais ao céu azul-claro. Prédios multicoloridos, de diversos tamanhos e arquiteturas, brotam do chão. Alguns mais baixos mostram seus telhados marrons. O verde-escuro das árvores esconde as ruas e calçadas, que estão lá, mas não aparecem. Dois urubus esvoaçam de um canto ao outro, fazendo círculos no ar. Sobem alto, a procura de algum alimento. Esse deve ser o último voo do dia. A noite deve chegar logo. O barulho do trânsito aumenta. Jovens começando a curtir os rolês, gente retornando aos seus lares. Essa paisagem, que nunca se repetirá, anuncia a iminência do anoitecer. Algumas horas depois, as luzes dos prédios se acendem, assim como a iluminação das ruas, os urubus somem. Os lares vivem à noite, bem como os bares e restaurantes. O movimento continua também nas escolas e faculdades.  Nos pores do sol que virão, as nuvens e á...

Manhã de domingo

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Acordo em uma manhã ensolarada de domingo. Os tristes dias frios recentes deram lugar ao enérgico calor. Um sabiá canta por perto, reconheço seu canto monótono, porém melódico. Ela já se levantara, preparando o café. Torna ao quarto anunciando os pães de queijo que estão saindo do forno. Posso sentir o cheiro da iguaria. Me levanto e vou até a sala de jantar, onde já me espera uma cesta com os saborosos pãezinhos. Para não perder o costume, faço pequenos sanduíches com eles e um queijo comprado na véspera. O pão, recheado com o mesmo queijo da massa, fica ainda mais saboroso. Percebo a beleza de poder observar constantemente o que vivo, mantendo os miolos a trabalhar não apenas no que sinto, mas nos planos que faço para o dia. Esse estado de atenção constante mantém meu corpo alerta e feliz. Minha filha mais nova ainda dorme. Penso que hoje teremos um almoço especial, porque a mais velha, recém-casada, virá almoçar conosco. Esperamos ainda minha cunhada e seus filhos. Enquanto aguardo,...

vida consciente

Aproveitar o caminho, essa oportunidade única. Sentir em cada estímulo, a experiência singular. Observar a cada instante, viver, fazer-se vida. Entender o significado que viver a todos convida. Um existir nunca solitário, que precisa, para ser, da solidária mente, dedicada a compreender. Sem o ímpeto de externar, com mais tempo consigo. A mente enfim sossega no fundo da consciência. Nesse sítio o pensar encontra as respostas. O eu vibrante e intenso no íntimo se constrói. Não vive fora de si.  Em ritmo maquinal. Assume saber pouco, ciente do que contém. Mais que senciente, Consciente é nosso ser. Porém o valor da mente, Sem ciência vai perder. Senciência própria do vivo. Capaz de sentir o meio. Com a ciência amplia a vida no seu seio. Com simplicidade caminhar, não pensar na aparência, mas na felicidade escondida, no fundo, na inocência. O prazer que permanece, em sutis transformações; feitas sem prece. Broto em busca da luz. A atenção, no caminho, transforma-o em beleza. A verdade...

Reinventando o cotidiano

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No conforto do meu quarto, uma cama Queen é ocupada apenas por mim, sentado. Um pijama quadriculado, um cobre leito cinza atravessado por um enfeite tecido em linha multicolorido, uma blusa de lã verde jogada sobre a mesma. Quatro travesseiros. Uma cômoda estreita com objetos variados, dentre eles três porta retratos que capturam momentos do casal e sua família. Um espelho calado, os computadores sem vida. Na sala, uma TV estridente transmite a novela. Não tenho vontade de assistir a essa melodramática e imensamente cruel trama.  Continuo no quarto, escrevendo no meu celular. Penso na minha esposa a estudar em outro bairro da cidade. Ela gosta da novela, eu sempre digo que é ruim. Às vezes assisto com ela. Deito de bruços, mantendo a escrita em uma posição mais confortável. O quarto tem outros elementos que deixo à imaginação do leitor recriar. Nesse momento, me concentro na escrita.  O quarto agora não é somente um cômodo, é um refúgio que me permite desenvolver meu pensament...